Timbó – SC, 11 a 13 de junho de 2013
A MARAVILHA QUE É O SER HUMANO
Antes de falar de temas religiosos gostaria de falar-lhes um pouco da maravilha que é o ser humano. Quero lembrar-lhes que o ser humano é fruto de um longo processo de evolução da própria VIDA. A Vida evoluiu milhares e milhares de anos até que ser criada esta espécie, à qual pertencemos e que chamamos humana. Em nós a vida continua sendo criada, desenvolvendo-se, desdobrando-se, revelando-se em diferentes grupos culturais, em diferentes organizações econômicas, políticas, sociais e culturais. A vida fez surgir o ser humano do interior da própria evolução criativa da terra e do cosmo.
Por sua vez, o ser humano continua em si mesmo e nas suas obras a própria expressão criativa da vida. Nós nos recriamos na própria evolução criativa da vida. Nesse nível de expressão temos que incluir também nossa capacidade reflexiva, nossa capacidade de amar, nossa capacidade ética e todas as capacidades que nos caracterizam.
Assim sendo, não podemos ter medo de afirmar que tudo o que “produzimos” como conhecimento, como arte, como relacionamento, mesmo destrutivo, ou alienante, é uma tentativa nossa de compreender, de transformarmos e nos adequarmos da melhor maneira possível às perguntas que a própria vida vai nos lançando. Essas perguntas são, em última análise, as próprias situações nas quais nos encontrarmos ao longo de nossa história coletiva e pessoal.
Nosso aprendizado vital, articulado ao conjunto da natureza permitiu que gradualmente respondêssemos, por exemplo, ao desafio que um rio nos lança como “separação” entre um lugar e outro e, fomos capazes de construir pontes. Para nos deslocarmos nas águas, construímos barcos e em seguida navios. Para vencer as distancias construímos aviões e assim por diante. Aprendemos a observar atentamente nossa existência humana, a vida dos insetos animais, plantas e em todos eles descobrimos caminhos para vivermos e desenvolvermos nossa criatividade e nos ajustarmos aos desafios de cada situação.
Nosso aprendizado vital nos fez cultivar em nós mesmos a admiração e a perplexidade diante da “ordem” de tudo o que existe e nos fez falar em diversidades ordenadas e criadoras, assim como de espíritos protetores. Fez-nos perceber também o enigma do mal, da injustiça, do ódio, da impunidade humana e nos fez falar de demônios e infernos. E este processo, bem conhecido por nós, continua se desdobrando em diversas formas, segundo as culturas, os contextos, as épocas.
A vida que está em nós, por sua vez, é também continuamente recriada a partir de nós mesmos. A cultura humana nas suas múltiplas expressões artísticas e literárias testemunha nossa impressionante criatividade. Tal criatividade se dá também no mundo vegetal e animal de forma diferente, muito embora tenhamos aprendido que “esses mundos” sejam poucos criativos.
Na realidade, pensamos assim porque sempre nos referimos à criatividade humana e, a partir dela, julgamos tudo o que existe. Seria até bom, de vez em quando, a gente parar e pensar na criatividade que existe na semente de laranjeira, na memória fixada nesta pequena semente, na sua capacidade de desenvolver-se, se as condições são propicias, na capacidade de adaptar-se a diferentes solos e a diferentes situações, de tornar-se árvore, de dar flores e frutos e, de novo, sementes. Sem dúvida, sua criatividade não tem as mesmas características da criatividade humana, nem sua complexidade, mas não deixa de participar espantosa e continua criatividade do Universo.
Não faz parte de meus objetivos refletir aqui sobre a força vital evolutiva presente nas plantas, animais e em todo o universo. Creio que melhor nem seria capaz, mas é importante apenas lembrar que todos os seres são habitados por essa mesma força vital que se desdobra de formas distintas e originais de cada um.
Ora, é nessa perspectiva que gostaria de explicar-lhes que é o ser humano que, não só criou as formas para se ajustar às condições do meio ambiente, mas criou também as suas próprias crenças, seus mitos explicativos do Universo e do humano, as suas liturgias, as suas celebrações, a suas organizações. O que estou também querendo dizer concretamente é que o ser humano não afirmou do dia para a noite a existência de um ser superior, ou a divindade da Terra, ou a divindade do Sol. Estas afirmações nascidas de diferentes povos são frutos de uma evolução gradativa em que, pouco a pouco, os seres humanos vão organizando de maneira refletida, o sentido da vida, vão respondendo de forma provisória às perguntas sobre sua origem, vão organizando também o sentido de seus medos, dando-lhes explicações, confirmando umas e rejeitando outras.
As nossas ideias sobre as coisas, sobre nós mesmos, sobre o Universo não nascem prontas, não caem milagrosamente do céu e nem brotam milagrosamente na terra. Elas são frutos de lenta maturação, de milênios de anos de gestação e de continua transformação, mesmo se nem sempre perceptíveis por nós em todo seu complexo percurso.
A semente plantada no fundo da terra sofre múltiplos processos de transformação, de mutação de vida e de morte, até aparecer na superfície do solo. E quando descobrimos que a semente se tornou plantinha nem nos lembramos de todo árduo processo que foi vivido nas entranhas da terra, nas entranhas da semente e de todas as múltiplas interações de todas as forças da natureza. O mesmo se dá no humano. As coisas que produzimos, mesmo as mais preciosas, mesmo as mais sublimes como nossas crenças religiosas, brotaram de um longo processo de maturação no qual as respostas e necessidades do momento estavam sempre presentes. Nossa criatividade extraordinária foi sendo capaz de produzir significados que puderam nos ajudar a viver naquela situação. E estes significados não são realidades estáticas, mas fazem parte do dinamismo da vida e, consequentemente, também mudam, se transformam necessariamente para responder aos apelos da vida e se ajustar às novas situações que enfrentamos.
Nem sempre pensamos nessas coisas e por isso, muitas vezes, permanecemos apenas na superfície da terra, dos efeitos que a terra produziu sem nos perguntarmos por outros níveis mais radicais, pelas raízes, pelas possíveis causas que fizeram surgir tal ou tal crença, tal ou qual esperança. Às vezes, é como se fossemos habitados por um medo de ir mais longe, e nem percebemos que se não formos mais longe, se não vermos a terra, se não resolvermos, se não estercarmos de novo, mesmo a plantinha nascida na superfície do solo, não se sustentará.
Para darmos o próximo passo em nossa reflexão é importante ter claro que os significados humanos das coisas humanas nascem de nós, assim como os significados humanos de todo o universo. Somos nós mesmos que construímos nossas ciências, nossas interpretações nossa sabedoria, nossos conhecimentos. Somos nós que afirmamos algo e amanhã retificamos nossa afirmação anterior.
Somos nós que afirmamos uma imagem de um Deus guerreiro e vingador ou a imagem de um Deus terno e compassivo. Somos nós através de nossos antepassados e tradições que afirmamos a Trindade como três pessoas distintas e um só Deus e podemos afirmá-las de outra maneira, segundo as novas percepções.
Somos seres necessitados de sentido, somos como que habitantes de um continente que chama sentido, só que esse continente é formado substancialmente por construções, por interpretações nascidas de nós. Como disse R. Alves, “a gente tece as redes nas quais deitamos”.
Esta é a maravilha humana, maravilha que precisa ser re-situada e valorizada dento do conjunto do universo do qual fazemos parte. Portanto, pouco a pouco, temos que tentar superar a tendência tão presente em nós de que apenas aquilo que vem de um Ser superior, acima de nós, pode ser bom, ainda que tudo o que existe e acontece nos vem de um Ser superior, todo poderoso…
(Extraído de GEBARA, Ivone. Trindade: Palavras sobre coisas velhas e novas. Paulinas, São Paulo, 1994)
UM NOME, UMA HISTÓRIA…
“Pedro é um nome. Nomeia um indivíduo, uma individualidade, uma identidade de pessoas. Muitos pedros são, cada um, um Pedro. Pedro Garcia de Oliveira acrescenta ao nome da pessoa os de seus genes famíliares: Garcia para os da mãe; de Oliveira para os genes do pai. A identidade pessoal reveste-se de posições familiares, ordens na escala dos nascimentos, relações entre parentes. Dr. Pedro Garcia de Oliveira acrescenta os nomes da pessoa e da família na pessoa, os títulos de profissão, de classe, de status social. Os nomes que a ordem social atribui a seus membros. Pessoa, parente, engenheiro agrônomo. Cidadão, branco ou preto, eleitor, católico ou protestante, Flamengo. Outros nomes, títulos diferenciadores de crença, posição social. “raça”. (…) Indicadores sociais de status e papéis, uns atribuídos a ele por “berço”, “cor da pele”, “posição social”, outros adquiridos por eleição ou vocação. Na verdade, uma complicada trama de relações de direitos e deveres socialmente codificados e escritos nas regras de trocas entre os atores sociais de seu mundo: Pedro Garcia de Oliveira. Escritos – às vezes com maiores poderes de orientação da conduta – nas normas sociais que o uso faz e a reprodução do uso consagra.
A palavra é antiga: “identidade” (…) Identidade pode ser um conceito que explique, por exemplo, o sentimento pessoal e a consciência da posse de um eu, de uma realidade individual que a cada um de nós nos torna, diante de outros eus, um sujeito único e que é, ao mesmo tempo, o reconhecimento individual dessa exclusividade. A consciência de minha continuidade em mim mesmo.
Os acontecimentos da vida de cada pessoa geram sobre ela a formação de uma lenta imagem de si mesma, uma viva imagem que aos poucos se constrói ao longo de experiências de trocas com os outros: a mãe, os pais, a família, a parentela, os amigos de infância e as sucessivas ampliações de outros círculos de outros: outros sujeitos investidos de seus sentimentos, outras pessoas investidas de seus nomes, posições e regras sociais de atuação”. (Carlos Rodrigues BRANDÃO, Identidade e Etnia, p. 35/37)
LIBERTAR A FORÇA DO EVANGELHO
Os cristãos não podem continuar a reter a força humanizadora do seu Evangelho
José Pagola
O relato da “transfiguração de Jesus” foi desde o início muito popular entre os Seus seguidores. Não é um episódio a mais. A cena, recriada com diversos recursos de carácter simbólico, é grandiosa. Os evangelistas apresentam Jesus com o rosto resplandecente enquanto conversa com Moisés e Elias. Os três discípulos que o acompanharam até o cume da montanha ficam surpreendidos. Não sabem o que pensar de tudo aquilo. O mistério que envolve Jesus é demasiado grande. Marcos diz que estavam assustados.
A cena culmina de forma estranha: “Formou-se uma nuvem que os cobriu e saiu da nuvem uma voz: Este é o Meu Filho amado. Escutai-O”. O movimento de Jesus nasceu escutando a Sua chamada. A Sua Palavra, recolhida mais tarde em quatro pequenos escritos, foi engendrando novos seguidores. A Igreja vive escutando o Seu Evangelho.
Esta mensagem de Jesus encontra hoje muitos obstáculos para chegar até os homens e mulheres do nosso tempo. Ao abandonar a prática religiosa, muitos deixaram de escutá-Lo para sempre. Já não ouvirão falar de Jesus senão de forma casual ou distraída.
Tampouco quem se aproxima das comunidades cristãs pode apreciar facilmente a Palavra de Jesus. A Sua mensagem se perde entre outras práticas, costumes e doutrinas. É difícil captar a sua importância decisiva. A força libertadora do Seu Evangelho fica por vezes bloqueada pela linguagem e por comentários alheios ao Seu espírito.
No entanto, também hoje, o único decisivo que nós cristãos podemos oferecer à sociedade moderna é a Boa Nova proclamada por Jesus, e o Seu projeto de uma vida mais sã e digna. Não podemos continuar a reter a força humanizadora do Seu Evangelho.
Temos de fazer que corra limpa, viva e abundante pelas nossas comunidades. Que chegue até aos lares, que a possam conhecer quem procura um sentido novo para as suas vidas, que a possam escutar quem vive sem esperança.
Temos de aprender a ler juntos o Evangelho, familiarizar-nos com os relatos evangélicos. Colocar-nos em contato direto e imediato com a Boa Nova de Jesus. Nisso temos de consumir as energias. Daqui começará a renovação da qual necessita hoje a Igreja.
Quando a instituição eclesiástica vai perdendo o poder de atração que teve durante séculos, temos de descobrir a atração que tem Jesus, o Filho amado de Deus, para aqueles que procuram a verdade e a vida. Dentro de poucos anos, nos daremos conta de que tudo está a empurrar para pôr mais fidelidade a Sua Boa Nova no centro do cristianismo.
PRÁTICA EVANGELIZADORA DE JESUS
No Evangelho de Marcos temos uma verdadeira cartilha que nos ensina como vivenciar e anunciar a Boa Nova do Reino. Vamos tomar e olhar de perto o trecho de Mc 1,16-45, onde aprendemos o objetivo que a Boa Nova do Reino quer realizar na vida das comunidades. Ou seja, é o objetivo que devemos sempre ter presente na Evangelização.
A Boa Nova tem como origem e conteúdo básico: “Jesus Cristo é Filho de Deus” (Mc 1,1). O anúncio desta Boa Nova não cai de pára-quedas dentro da vida do povo, mas vem como resposta às suas esperanças (Mc 1,2-3), através de pessoas bem concretas (Mc 1,4-8); tem o seu momento de inauguração (Mc 1,9-11), de provação (Mc 1,12-13) e de proclamação (Mc 1,14-15).
Em seguida, escolhendo bem os fatos, Marcos descreve qual o objetivo que o anúncio da Boa Nova quer alcançar na vida do povo. Os sete pontos que seguem agora podem servir como critério de avaliação para examinar de perto a qualidade da Evangelização que estamos realizando hoje:
1. Mc 1,16-20: Vocação dos primeiros discípulos. A Boa Nova tem como primeiro objetivo congregar as pessoas em torno de Jesus e, assim, criar comunidade.
2. Mc 1,21-22: Admiração do povo diante do ensinamento de Jesus. A Boa Nova faz surgir no povo a consciência crítica diante dos escribas, seus líderes religiosos.
3. Mc 1,23-28: Expulsão de um demônio. A Boa Nova combate e expulsa o poder do mal que estraga a vida humana e aliena as pessoas em si mesmas, tornando-as gananciosas, egoístas e individualistas.
4. Mc 1,29-34: Cura da sogra de Pedro e de muitos outros doentes. A Boa Nova atende e cuida da vida doente e procura restaurá-la para o serviço.
5. Mc 1,35: Jesus ora num lugar deserto. A Boa Nova deve permanecer unida à sua raiz que é o Pai, através da Oração.
6. Mc 1,36-39: Anúncio da Boa Nova pelas aldeias da Galiléia. A Boa Nova exige que o missionário mantenha a consciência da missão e não se feche nos resultados já obtidos.
7. Mc 1,40-45: Um leproso é curado e enviado aos sacerdotes. A Boa Nova acolhe os marginalizados e procura reintegrá-los à convivência da comunidade.
Estes sete pontos marcaram o anúncio da Boa Nova realizado por Jesus e pelos primeiros cristãos. Devem, portanto, caracterizar a Igreja de Jesus.
Para isso, podemos dizer e assumir que Jesus agia a partir de alguns parâmetros, tendo em vista ações educativas, como:
Jesus atuava para cada situação, ou seja, Jesus tinha um “modus operandi”, de acolher e de envolver. Ver Lc 10,25-37; Jo 3,1-21; Lc 10,25-37; Mt 5,7-9.
A mensagem de Jesus era a partir da realidade cotidiana (Lc 13 1-4); realista (Mt 12,1-8); e um convite à mudança de vida libertadora e à reflexão participativa (Mt 7,24-29.
Jesus partia do que se passa (Mt 4,12-13); do como reage (Mt 4,17-18); e do que sente a pessoa (Mt 5,1-12). Assim, as ações pedagógicas que devem ser desenvolvidas pelos discipuladores é conhecer a realidade do aluno.
Para Jesus o importante é andar junto (Mt 12,1-8); criar intimidade (Mt 12,46-50); ser solidário (Jo 8,1-11). As ações pedagógicas que devem ser desenvolvidas pelos discipuladores é participar da vida do aluno.
As atitudes de Jesus são: de respeito (Lc 5,27-32); de misericórdia (Lc 7,11-17); de incentivo (Lc 22,31-32). As ações pedagógicas que devem ser desenvolvidas pelos discipuladores é ajudar na libertação do aluno.
O espírito de Jesus – José Pagola
Jesus apareceu na Galileia quando o povo judeu vivia uma profunda crise religiosa. Levavam muito tempo sentindo a distância de Deus. Os céus estavam “fechados”. Uma espécie de muro invisível parecia impedir a comunicação de Deus com o Seu povo. Ninguém era capaz de escutar a Sua voz. Já não havia profetas. Ninguém falava impulsionado pelo Seu Espírito.
O mais duro era essa sensação de que Deus os tinha esquecido. Já não os preocupava os problemas de Israel. Por que permanecia oculto? Por que estava tão longe? Seguramente muitos recordavam a ardente oração de um antigo profeta que rezava assim a Deus: “Oxalá rasgasses o céu e baixasses”.
Os primeiros que escutaram o evangelho de Marcos tiveram que ficar surpreendidos. Segundo o seu relato, ao sair das águas do Jordão, depois de ser batizado, Jesus “viu rasgar-se o céu” e experimentou que “o Espírito de Deus baixava sobre ele”. Por fim era possível o encontro com Deus. Sobre a terra caminhava um homem cheio do Espírito de Deus. Chamava-se Jesus e vinha de Nazaré.
Esse Espírito que desce sobre Ele é o alento de Deus que cria a vida, a força que renova e cura os vivos, o amor que transforma tudo. Por isso Jesus dedica-se a libertar a vida, a curá-la e a fazê-la mais humana. Os primeiros cristãos não quiseram ser confundidos com os discípulos de João Batista. Eles sentiam-se batizados por Jesus, com o Seu Espírito.
Sem esse Espírito tudo se apaga no cristianismo. A confiança em Deus desaparece. A fé debilita-se. Jesus fica reduzido a um personagem do passado, o Evangelho converte-se em letra morta. O amor arrefece e a Igreja não passa de ser mais uma instituição religiosa.
Sem o Espírito de Jesus, a liberdade afoga-se, a alegria apaga-se, a celebração converte-se em rotina, a comunhão perde a força. Sem o Espírito a missão fica esquecida, a esperança morre, os medos crescem e o seguir a Jesus termina em mediocridade religiosa.
O nosso maior problema é o esquecimento de Jesus e o descuido do Seu Espírito. É um erro pretender conseguir alcançar com organização, trabalho, devoções ou estratégias diversas o que só pode nascer do Espírito. Temos de voltar à raiz, recuperar o Evangelho em toda a sua frescura e verdade, e batizar-nos com o Espírito de Jesus.
Não temos de nos enganar. Se não nos deixamos reavivar e recriar por esse Espírito, não temos nada importante que aportar à sociedade atual, tão vazia de interioridade, tão incapacitada para o amor solidário e tão necessitada de esperança.
Não desviar Jesus (Lc 4,1-13) – José Pagola
As primeiras gerações de cristãos estavam muito interessadas nos estudos e salienta que Jesus teve de se superar para permanecer fiel a Deus e viver para sempre trabalhando em seu projeto de uma vida mais humana e digna para todos.
A história das tentações de Jesus não é um evento fechado, ocorrendo em um tempo e em um determinado lugar. Lucas diz-nos que, no final dessas tentações, “o diabo o deixou até outra vez”. Tentações de volta na vida de Jesus e de seus seguidores.
Assim, o evangelista coloca a narrativa da atividade profética de Jesus: “seus seguidores têm um conhecimento profundo dessas tentações, desde o início”.
Na primeira tentação é falado de pão. Jesus se recusa a usar a Deus para satisfazer a sua própria fome: “Não só de pão vive o homem”. A primeira coisa de Jesus é buscar o reino de Deus e a sua justiça: o pão para todos, alimentar uma multidão faminta.
Também hoje, a nossa tentação é a de pensar apenas em nosso pão e preocupar-nos somente com nossas crises. Voltamo-nos para Jesus quando cremos e vemos os dramas, medos e sofrimentos daqueles a quem falta quase tudo.
Na segunda tentação é falado de poder e glória. Jesus renuncia tudo isso. Não se curva para o diabo que oferece o domínio sobre todos os reinos do mundo: “O Senhor, teu Deus.”
Voltamo-nos para Jesus, quando acreditamos que o Reino de Deus vai abrir caminhos, quando trabalhamos para sermos mais compassivos e carinhosos.
Na terceira tentação é proposto a Jesus ser sustentado por anjos de Deus. Jesus não engana: “Não tentarás o Senhor, teu Deus.” Não haverá um sinal espetacular do céu. Serão sinais de bondade para aliviar o sofrimento e as doenças das pessoas.
Voltamo-nos para Jesus quando uma vida de humildade e serviço aos necessitados expressa nosso amor por todos os seus filhos.
Experiência Religiosa
Desenvolvimento Humano:
Há um mundo em mim
O transcendente tem a ver com a realidade concreta e com o que não atingimos:
– Três níveis de compreensão
– Este esquema, no geral, perpassa a vida toda. Recorre-se a ele em tempo de crise.
– Cada um constrói mapas a partir das necessidades, desejos, preocupações, interesses, sonhos, etc. e o encaminhamento da vida se dá a partir dos mapas construídos.
Algumas concepções de deus:
“deus medo – Não tem rosto: é uma coisa – ameaçadora, um poder inquietante com o qual é preciso fazer contratos e ritos conjuradores que o domestiquem. O medo é característico dessa atitude religiosa. “Homens de pouca fé, por que temeis?”, reclamava Jesus. O medo degrada o ser humano e não pode servir de fundamento para a fé. Esse ídolo pode estar presente em qualquer religião e confere um valor mágico a rituais, a escrituras e a sacerdotes. Valor mágico porque passa ao lado da atitude de entrega, esperança e amor.
deus governante – que nos manobra como marionetes. É atribuído a ele um poder imenso que o torna responsável pelos males no mundo. Diante dele, muitos adotam uma atitude servil, ou então de rebeldia.
deus utilidade – é como o gênio da lâmpada, à disposição de nossas necessidades. “Lembre-se sempre de que deus está do lado de quem vai vencer”, nas cruzadas e nos massacres, de judeus, de palestinos, de indígenas, de negros, de bruxas. Gott mit uns (“Deus está conosco”), era um lema nazista. Esse ídolo tem sido usado com freqüência para impor a obediência às crianças (quantos de nós não ouviram a trágica frase: “não faça isso porque Deus castiga”?!). É também um conveniente tapa-buraco para as lacunas da inteligência (”não dá para explicar porque é mistério”), antepondo inaceitáveis limites aos avanços do conhecimento.
deus-sentimento – serve de justificativa para uma moral enfadonha, inimiga da vida e das grandes paixões. Esse ser balofo só se interessa por “belas almas” castradas, que recebem uma moral puritana antes da fé e até sem a fé, a qual é fundamento das ações humanas. Os que, tristes, crêem nesse ídolo, foram alvo da crítica do filósofo Nietzsche: “eles não têm o rosto de ressuscitados”. Da mesma forma, no livro do Apocalipse, os mornos são vomitados”. (Jorge Cláudio Ribeiro. In: Moradas do Mistério. Olho dágua. São Paulo, 2001, pp. 99-100)
O Ser Humano e a Busca de Sentido
– A beleza da vida está presente quando o núcleo, a essência, ilumina e dá sentido a tudo. O desafio está em pensar o que efetivamente é essencial na sociedade atual. Na busca e dinamismo para compreender o ser humano na sua integridade, contemplando todas as dimensões, é preciso considerar:
Corpo/físico
– O corpo fala, expressa, irradia.
– Contemplar o corpo é deixar o interior revelar-se. Cuidar da saúde para comunicar-se melhor.
– O corpo é sacramental. No corpo está escrita a história de vida.
Social/relacional
– Comprometer-se com as pessoas e converter-se para a solidariedade.
– Temos valores e temos limites – é fundamental relacionar-se com esta verdade.
– Não há possibilidade de vida sadia sem desenvolver a misericórdia e o perdão. Perdoar é reconstruir e oferecer oportunidade de crescimento. É assumir compromisso de ajuda e não de culpa, isto é, olhar para frente com responsabilidade.
Psicológico/afetivo
– O afeto é o aspecto fundamental do ser humano.
– Deus, além de criar o homem e a mulher, criou também a vocação de ser mãe e pai, isto é, a vocação de cuidar e dar sentido a todas as coisas, inclusive para a morte.
– Confrontar o próprio nome com o de Deus e perceber as maravilhas que ele fez e faz – “O Senhor fez em mim maravilhas, Santo é seu nome”. Sentir-se amado por Deus é fundamental para o fluir da vida.
– Eis a questão: “Morre mais gente por falta de afeto do que de pão” (Madre Teresa de Calcutá)
– Deixar o corpo transparecer as razões da existência. Amarrar a cara significa morrer mais cedo. A postura de vítima só atrapalha a vida pessoal, grupal e social.
Intelecto/racional
– O mundo se constrói através da pesquisa, da ciência, da aprendizagem.
– Tenho que ser o melhor possível, não melhor do que os outros. É dar o máximo de mim, o melhor que tenho.
– Pesquisar, estudar e aprofundar é para servir. Sempre há tempo para aprender.
– O ser humano precisa ter desafios, metas, projetos, etc, pois pelo contrário estagna, se acomoda e endurece as suas posições. Poucas são as verdades absolutas. “Tenho medo das pessoas com muitas convicções” (R. Alves)
Espiritual/interior
– Relação de intimidade com Deus. Fazer a experiência de Deus é fundamental para o desenvolvimento pleno da vida. Quem enche a vida de coisas não tem lugar para Deus.
– A questão central da espiritualidade não é definir quem é Deus. É antes, sim, estar sempre em busca. A definição de Deus acaba por enquadrá-Lo, aniquilá-Lo e por conta disso tira, esvazia, o Mistério.
Amor/fé
– Quase na totalidade as doenças são pelo fato da pessoa não se sentir amada.
– Deus fala de dentro – é preciso escutá-lo. Esvaziar-se a si mesmo (Fl 2).
– Deus não é das igrejas. Ele é do coração do ser humano, é do cosmos, por isto ninguém pode aprisioná-Lo. O Espírito vem de onde quer e vai para onde quer. Movimento de Ir e Vir. De apelos e respostas…
– Nesta dinâmica é preciso descobrir o desejo de Deus em relação à pessoa e a cada forma de vida.
HABITAR A CASA – PAI MISERICORDIOSO
A sociedade moderna ou pós-moderna nos impulsiona a viver fora de casa. Inúmeras são as propostas de realização pessoal, felicidade, prazer, sucesso. Os bens de consumo anunciados trazem esta marca, inclusive os livros que mais vendem são os que prometem a conquista destes anseios. O que percebemos é que são ofertas que na prática não funcionam, pois, o foco está fora do ser humano. Não está centrado na essência. Anuncia como se a felicidade viesse de uma outra instância que pouco ou nada tem haver com a realidade. É o resultado da imaginação que cria um IDEAL que falsifica as necessidades e desejos e, consequentemente, a realidade humana. Com isto fica difícil ou impossível habitar a casa.
A atividade missionária de Jesus esteve centrada na questão de habitar a casa. Convidou a todos para entrarem. Verificamos no seu encontro com as crianças, prostitutas, cegos, aleijados, mulheres, leprosos – enfim todos os excluídos. O encontro com Jesus desperta a confiança, o potencial e consequentemente chama para assumirem a própria responsabilidade.
Penso que na parábola da volta do Filho Pródigo se concretiza o verdadeiro encontro na casa e modifica a todos. No seguimento de Jesus à luz do nosso Carisma somos chamados/as a refletir em qual dos três personagens centrais nos encontramos na concretização de nossa missão. Somos o filho que sai, o filho mais velho ou o pai misericordioso? Re-significar a Educação é assumir estas diferentes dimensões em cada um/a de nós e HABITAR A CASA.
Ler o texto: Lc 15,11-32
1. A experiência do filho mais moço
Só quando me atrevo a aprofundar o significado de deixar a casa é que passo a entender realmente a volta. Reconhecer e aceitar as longas viagens por terras estrangeiras é que possibilita a compreensão do amor divino e a misericórdia capaz de transformar morte em vida. Deixar a casa é muito mais do que um acontecimento histórico limitado no tempo e lugar. É negar a realidade espiritual de que pertenço a Deus com todo o meu ser, que Deus me ampara num eterno abraço. Deixar a casa é como se eu ainda não possuísse um lar e precisasse procurar muito distante até encontrá-lo.
A casa é o centro do meu ser, onde posso ouvir a voz que diz: “Você é o meu Filho Amado, sobre você ponho todo o meu carinho”. Voz que liberta das atividades sem sentido, rotineiras, enfadonhas, angustiantes propostas pelo mundo sombrio. Ser Filho Amado é perceber que “ainda que eu caminhe por um vale tenebroso, nenhum mal temerei”.
Como Bem-amado, posso curar os enfermos, ressuscitar os mortos, purificar os leprosos, expulsar demônios, proclamar o ano de Graça. Ser Amado é ser capaz de sofrer perseguições sem desejo de vingança e, receber cumprimentos, elogios, sem precisar utilizá-los como prova de minha bondade. É ser livre para viver e dar a vida. Como tu me enviaste ao mundo, também eu os envio ao mundo. O mundo é o verdadeiro lar, a verdadeira morada, o local de permanência. Habitam esta morada as pessoas que se deixam tocar e sentem as mãos bendizentes de Deus, como fogo que aquece o interior.
Raiva, ressentimento, ciúme, desejo de vingança, ganância, antagonismo e rivalidades são sinais de que saí de casa. O poder, quando não está a serviço é uma prova da decadência da casa. Todos os bens recebidos do Pai quando utilizados para a promoção pessoal, opressão, arrogância, exclusão, faz com que me perca num “país distante”. Reconhecer estes limites faz emergir o clamor de libertação e começa o retorno para casa.
Para o retorno não há necessidade de preparar nenhum discurso justificador. A caridade consigo mesmo e com o outro dispensa o discurso. É só chegar… O caminho para casa é longo e difícil. Receber o perdão de Deus é um dos maiores desafios espirituais. A obsessão na elaboração de inúmeros discursos inviabiliza o encontro e, conseqüentemente a entrada na casa. O medo de assumir a responsabilidade de filho trava a volta. Chegar em casa é compreender que não terei somente direito ao céu, mas a terra será minha herança, sendo filho livre e não empregado. O jovem que o pai abraça é toda a humanidade dilacerada voltando para Deus.
Refletir:
- Como sinto o filho mais moço na minha história pessoal, familiar, pastoral, profissional, comunitária, eclesial e social?
- Refletir sobre o jeito de Jesus viver o verdadeiro Filho Pródigo: “O Verbo se fez carne e habitou entre nós”.
- O que posso mudar na minha vida para HABITAR A CASA?
2. A experiência do filho mais velho
Segundo a parábola a conversão mais difícil é daquele que permanece em casa. Ambos queriam o abraço do pai que perdoa como também ambos precisavam voltar para casa. Isto por que os dois estão perdidos. O filho mais velho também se afastou, cumpriu seu dever, trabalhou duro, deu conta das obrigações, mas se tornou mais e mais infeliz e cativo.
A postura do filho mais velho de agradar o pai o afastou de casa. “Nunca transgredi um só de teus mandamentos…”. É uma queixa em que a obediência e dever tornaram-se um peso e o trabalho uma escravidão. Expressa a falta de liberdade na casa do pai e aí a inveja se manifesta. Claro que é difícil identificar e aceitar o desacerto do filho mais velho. Sempre fez tudo certo, obediente, cumpridor de tarefas, as pessoas o admiravam e consideravam o filho modelo, aparentemente sem defeitos. Mas, quando o pai acolhe o filho mais jovem explode todo o egoísmo, a raiva, o ressentimento, a maldade, o orgulho. São sentimentos que estão muito presentes na vida dos “santos” e “santas” que preocupam-se muito em evitar o “pecado”. Este fanatismo afasta da casa.
O filho mais velho pela sua rigidez torna-se um “peso”, não sorri, não brinca, não tem espontaneidade. Por isto, é incapaz de “entrar na festa, na dança”. Foi o pai que saiu. A parábola não diz se o filho mais velho entrou. Habitar a casa é difícil para os que pensam nunca ter saído.
A parábola não se divide entre bom e mau. Só o pai é bom. Ele ama os dois. O amor de Deus não depende se eu sou o filho jovem ou o mais velho. O único desejo de Deus é o de fazer voltar para casa. “Tudo o que tenho é teu”. O pai responde aos dois com suas particularidades. A volta do filho mais jovem o faz convocar para a comemoração cheia de alegria. A volta do filho mais velho o faz estender o convite para a total participação nessa alegria.
É preciso abandonar toda rivalidade e competição que leva a tratar o outro não como irmão, “esse seu filho…”, toma distância. Para o filho mais velho tanto o irmão mais jovem como o pai são estranhos. Não há confiança, aí fica difícil habitar a casa. Confiança e gratidão são indispensáveis para a conversão – a partir de então, será possível habitar a casa.
Refletir:
- Será que o filho mais velho que está em mim pode voltar para casa? Como posso voltar quando estou perdido em ressentimento, ciúme, prisioneiro da obediência e do dever que escraviza?
- Reflita sobre o jeito de Jesus viver o filho mais velho: “O Filho Amado sobre quem paira a complacência de Deus”.
- O cotidiano está cheio de filhos instáveis e indignados. Estando cercado por iguais parece haver solidariedade. Como me livrar do filho mais velho que está em mim, na comunidade e nos espaços profissionais sem arrancar as virtudes?
O Pai
No pai o pecado e perdão se fundem. O humano e o divino são um só. Um pai que reconhece o filho com os olhos do coração. O amor do pai abrange todo o sofrimento humano, encerra toda a humanidade. O toque de suas mãos, irradiando uma luz divina, deseja somente curar, restaurar a vida. Seu único desejo é abençoar. “Você é o Filho amado, sobre você coloco minha benção”. O filho é tocado por uma mão masculina e outra feminina. Vai além das mãos: é o seio de Deus que acolhe para renascer. É o coração que não se divide em mais ou menos. Acolhe todos para a luz da alegria.
Deus que é pai e mãe não se compara nunca. Ama e não atrasou a festa pensando que o filho mais velho se sentisse rejeitado. Isto fica claro também na parábola dos trabalhadores da vinha. Dá uma irritação pensar que os “folgados” serão também recompensados. A maneira de Deus é a de amar igualmente aqueles que chegaram tarde e, talvez, trabalharam “pouco”. É a dádiva, a misericórdia e a profunda gratidão dada a todos.
O desafio é deixar-se amar por Deus. É Deus que “saí e vai ao encontro”. É o amor eterno de um Deus que é pai e mãe, não dá aos filhos a oportunidade de se desculparem. Ele se antecipa às súplicas, elas são irrelevantes diante do regozijo da volta. Deus devolve a posição de herdeiro. Dá vestimenta e o ano de graça de Deus é inaugurado, inicia-se a festa da abundância, o Reino está acontecendo. Alegria que ilumina todas as ações de não-vida.
O chamado para a casa do Pai não é o final. Habitar a casa é perdoar, consolar, curar, oferecer a festa, isto é, vir a ser também pai. “Sede misericordiosos como o vosso Pai é misericordioso”. Para concretizar isto o Pai tem que deixar de ser estranho para nós. O medo do castigo de Deus paralisa a vida emocional e mental, independente da idade ou estilo de vida. Este medo é a tragédia humana. É uma “peste” que arrasa milhares de vidas. A meta é chegar a ter a compaixão do Pai. A superação do estado de filhos infantilizados pela instituição, sociedade ou pela visão deturpada de Deus é um caminho longo e exigente.
Somos “co-herdeiros em Cristo…”. Assumir isto não é um romantismo sentimental, é oferecer a mesma compaixão que recebi do Pai… Jesus, o Bem-amado do Pai, deixa a casa do Pai para carregar os pecados dos filhos errantes de Deus e trazê-los de volta. Mas, ao sair, permanece junto ao Pai e, através da completa obediência, oferece cura a seus irmãos ressentidos. Dar os passos em direção do amor é difícil – mas é o caminho.
Ser pai é ousar assumir a responsabilidade de uma pessoa espiritualmente adulta. Não há sucesso, não há popularidade nem fácil satisfação. É um vazio de verdadeira liberdade – até para assumir a morte. Poder dizer como o velho Simeão: “Agora Senhor, conforme a tua promessa, podes deixar o teu servo partir em paz”. Habitar a casa agora é o caminho para um dia habitarmos eternamente em Deus.
Refletir:
- Quais posturas da Educação, Família, Congregação, Missão, Igreja e Sociedade, mesmo que sutis, fazem com que se mantenha os filhos dependentes?
- O que na Escola, Sociedade, Família e na vida pessoal é preciso fazer para chegar a ser adulto responsável?
- Como HABITAR a CASA e prestar efetivamente um serviço a todos que estão “fora da casa” ou por demais “dentro dela”?
Síntese elaborada pelo prof. Antonio Boeing a partir
do livro “O Pai Misericordioso”, de Álvaro Barreiro.
Difusão Cultural – Interdependência humana
O antropólogo Ralph Linton escreveu um texto sobre o começo do dia do homem americano, que expressa a interação cultural.
“O cidadão norte-americano desperta num leito construído segundo padrão originário do Oriente Próximo, mas modificado na Europa Setentrional, antes de ser transmitido à América. Sai debaixo de cobertas feitas de algodão cuja planta se tornou doméstica na Índia; ou de linho ou de lã de carneiro, um e outro domesticados no Oriente Próximo; ou de seda, cujo emprego foi descoberto na China. Todos este materiais foram fiados e tecidos por processos inventados no Oriente Próximo. Ao levantar da cama faz uso dos “mocassins” que foram inventados pelos índios das florestas do Leste dos Estados Unidos e entra no quarto de banho cujos aparelhos são uma mistura de invenções européias e norte-americanas, umas e outras recentes. Tira o pijama, que é vestuário inventado na Índia e lava-se com sabão que foi inventado pelos antigos gauleses, faz a barba que é um rito masoquístico que parece provir dos sumerianos ou do antigo Egito.
Voltando ao quarto, o cidadão toma as roupas que estão sobre uma cadeira do tipo europeu meridional e veste-se. As peças de seu vestuário têm a forma das vestes de pele originárias dos nômades das estepes asiáticas; seus sapatos são feitos de peles curtidas por um processo inventado no antigo Egito e cortadas segundo um padrão proveniente das civilizações clássicas do Mediterrâneo; a tira de pano de cores vivas que amarra ao pescoço é sobrevivência dos xales usados aos ombros pelos croatas do século XVII. Antes de ir tomar o seu breakfast, ele olha a rua através da vidraça feita do vidro inventado no Egito; e, se estiver chovendo, calça galochas de borracha descoberta pelos índios da América Central e toma um guarda-chuva inventado no sudoeste da Ásia. Seu chapéu é feito de feltro, material inventado nas estepes asiáticas.
De caminho para o breakfast, pára para comprar um jornal, pagando-o com moedas, invenção da Líbia antiga. No restaurante, toda uma série de elementos tomados de empréstimo o espera. O prato é feito de uma espécie de cerâmica inventada na China. A faca é de aço, liga feita pela primeira vez na Índia do Seul; o garfo é inventado na Itália medieval; a colher vem de um original romano. Começa o seu breakfast com uma laranja vinda do Mediterrâneo Oriental, melão da Pérsia, ou talvez uma fatia de melancia africana. Toma café, planta abissínia, com nata e açúcar. A domesticação do gado bovino e a ideia de aproveitar o seu leite são originários do Oriente Próximo, ao passo que o açúcar foi feito pela primeira vez na Índia. Depois das frutas e do café vêm waffles, os quais são bolinhos fabricados segundo uma técnica escandinava, empregando como matéria-prima o trigo, que se tornou planta doméstica na Ásia Menor. Rega-se com xarope de maple, inventado pelos índios das florestas do Leste dos Estados Unidos. Como prato adicional talvez como o ovo de uma espécie de ave domesticada na Indochina ou delgadas fatias de carne de um animal domesticado na Ásia Oriental, salgada e defumada por um processo desenvolvido no Norte da Europa.
Acabando de comer, nosso amigo se recosta para fumar, hábito implantado pelos índios americanos e que consome uma planta originária do Brasil; fuma cachimbo, que procede dos índios da Virginia, ou cigarro, proveniente do México. Se for fumante valente, pode ser que fume mesmo um charuto, transmitido à América do Norte pelas Antilhas, por intermédio da Espanha. Enquanto fuma, lê notícias do dia, impressas em caracteres inventados pelos antigos semitas, em material inventado na China e por um processo inventado na Alemanha. Ao inteirar-se das narrativas dos problemas estrangeiros, se for bom cidadão, conservador, agradecerá a uma divindade hebraica, numa língua indo-européia, o fato de ser cem por cento americano” (apud, Laraia, Roque. Cultura: Um conceito antropológico, 1989, p. 110-112)
Natureza Humana e Produção Cultural
Sobre a natureza humana Alfred Kroeber dá um exemplo pertinente que auxilia na compreensão do que estamos falando, afirma ele:
Heródoto conta-nos que um rei egípcio, desejando verificar qual a língua-mater da humanidade, ordenou que algumas crianças fossem isoladas da sua espécie, tendo somente cabras como companheiros e para o seu sustento. Quando as crianças, já crescidas, foram de novo visitadas, gritaram a palavra bekos, ou, mais provavelmente bek, suprimindo o final, que o grego padronizador e sensível não podia tolerar que omitisse. O rei mandou então emissários a todos os países a fim de saber em que terra tinha esse vocábulo alguma significação. Ele verificou que no idioma frígio isso significava pão, e, supondo que as crianças estivessem reclamando alimentos, concluiu que usavam o frígio para falar a sua linguagem humana ´natural´, e que essa língua devia ser, portanto, a língua original da humanidade. A crença do rei numa língua humana inerente e congênita, que só os cegos acidentes temporais tinham decomposto numa multidão de idiomas, pode parecer simples; mas ingênua como é, a inquirição revelaria que multidões de gente civilizada ainda a ela aderem.
Contudo, não é essa nossa moral da história. Ela está no fato de que a única palavra bek, atribuída às crianças, constituía apenas, se a história tem qualquer autenticidade, um reflexo ou imitação – como conjeturam há muito os comentadores de Heródoto – do grito das cabras, que foram as únicas companheiras e instrutoras das crianças. Em suma, se for permitido deduzir qualquer referência de tão apócrifa anedota, o que ela prova é que não há nenhuma língua humana natural e, portanto, nenhuma língua humana orgânica.
Milhares de anos depois, outro soberano, o imperador mongol Akbar repetiu a experiência com o propósito de averiguar qual a religião natural da humanidade. O seu bando de crianças foi encerrado numa casa. Quando decorrido o tempo necessário, ao se abrirem as portas na presença do imperador expectante e esclarecido, foi grande o seu desapontamento: as crianças saíram tão silenciosas como se fossem surdas-mudas. Contudo, a fé custa a morrer; e podemos suspeitar que será preciso uma terceira experiência, em condições modernas escolhidas e controladas, para satisfazer alguns cientistas naturais e convence-los de que a linguagem, é uma coisa inteiramente adquirida e não hereditária, completamente externa e não interna – um produto social e não um crescimento orgânico. (Laraia, Roque. Cultura – um conceito antropológico 1987, p. 106-107).
A função da arte
“Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar.
Viajaram para o sul. Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando.
Quando o menino e o pai alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza. E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai:
Me ajuda a olhar!”. (E. Galeano. O Livro dos Abraços. L&PM, Porto alegre, 1989, p.15)
Assessor:
Prof. Antonio Boeing, São Paulo – [email protected]