Citando o nome da minha falecida avó materna, Otilia Brognara Borghezan, um breve histórico acompanha a imagem e o quadro de Santo Antonio que sustentava as lutas e a fé da comunidade de Volta Grande, município de Taió, na década de 1940, primeiros tempos da colonização do lugar. Esse quadro e essa imagem foram recentemente devolvidos à comunidade sob a alegação de que familiares dos que os guardavam tomaram essa decisão porque não havia mais interesse em preservá-los.
Uma primeira versão dessa devoção era contada desde meus tempos de infância e juventude. Por volta do ano de 1945, meu falecido avô migrou da região de Orleans, Sul do estado de Santa Catarina, para Taió, na região central catarinense.
A mudança era acomodada em “bruacas”, espécies de malas feitas de couro de boi, cru, e acopladas ao lombo de mulas. Nelas, minha avó materna Otília não teria se esquecido de colocar uma imagem de Santo Antônio de Pádua, seu santo protetor e exemplo de vida. Minha mãe Clarinda Borghezan Kestring assegura que se tratava, de fato, de uma imagem. No novo destino, em meio à mata e todos os desafios inerentes ao hostil ambiente, o santo significava confiança, coragem, socorro, esperança.
Conta minha mãe, naqueles tempos, ela, com a idade de seis ou sete anos, ainda se lembra que, aos domingos principalmente, mas também em dias santos de guarda, a imagem era exposta na sala da casa e os vizinhos ali se reuniam para os atos de devoção e pedidos de proteção.
Santo Antônio representava, assim, uma espécie de padroeiro para aqueles católicos, invocado em toda e qualquer necessidade ou aflição.
Quando eu ia para a escola, à idade de 07 anos, via todos os dias, à frente da sala, bonito altar, em cujo centro tronejava o santo padroeiro. Lembro-me muito bem, aos domingos e dias santos, sempre à tarde, pelas 15h, ali se reunia toda a comunidade para a reza do terço, ladainha de Nossa Senhora e cânticos. Meu saudoso pai, Gregório Kestring conduzia as orações e os cânticos. Ao final da devoção, publicava-se os avisos da comunidade. Festas em honra do santo, inclusive, eram realizadas nas dependências daquela “Escola Isolada Estadual de Volta Grande”. Não posso deixar de registrar o pitoresco fato de que, numa dessas festas de Santo Antônio, promovia-se uma dança no pátio da escola. Ali, com animação de experiente gaiteiro, os casais vinham divertir-se. Entre esses casais, eu via meus nonos paternos, Carlos Kestring e Angelina Kestring, nascida Veronês, meus pais, meus tios, acompanharem, ágeis e precisos, o ritmo da música. Meus avós maternos não eram muito afeiçoados à dança.
No dia em que presidi a primeira missa, 19 de dezembro de 1976, do outro lado do rio que denominávamos de “rio grande”, uns dois quilômetros adiante da escola, providenciou-se terreno, onde foi construído acolhedor salão. Era o início da instalação de uma nova comunidade ligada à Paróquia São Miguel Arcanjo. E o santo padroeiro, de comum acordo: Santo Antônio de Pádua, o santo querido da minha avó, aquele que viajara no lombo de mula. Para mim e para todos, nem se pensava em questionar, era o mesmo .protetor daquelas famílias desde a década de 1940.
No final do ano passado, 2017, de repente, chegou-me a notícia de que a imagem de Santo Antônio da minha avó havia sido devolvida à capela dedicada ao Santo, em Volta Grande. Interessei-me, até com certa ansiedade, por saber detalhes da novidade, ver a imagem e fotografá-la. Ela estava na casa de Simão Kestring, de saudosa e grata memória, primo do meu pai. Dirigi-me até lá e sua esposa Rainilde me apresentou a imagem e o quadro do santo. Vinham acompanhados do seguinte histórico assinado pelo entregador:
“Rio do Sul, 24 de agosto de 2017
Eu sou Marcolino Blemer, nascido em Grão Pará no dia 25 de janeiro de 1931. Sou filho de Henrique Blemer e Fredolina Nilsen, que vieram morar em Pinhalzinho no ano de 1937, onde mora atualmente o Sr. Pedro Peron. Alguns anos depois, fomos morar onde morava o Sr. Miguel Fontanive, Volta Grande.
Minha mãe Fredolina era muito devota de Santo Antonio. Rezava com a família e a comunidade diante de um quadro com a imagem do Santo. Mais tarde, ela foi operada em Blumenau e comprou uma imagem de Santo Antonio. Dona Augusta Kestring e Dona Otília Borghezan ajudaram a pagar a imagem, que ficava na nossa casa. As famílias ali se reuniam para rezar o terço.
Foi por causa de minha mãe que a comunidade escolheu o Santo para proteger as famílias. Por esse motivo, estou doando o mesmo quadro e a mesma imagem para a comunidade de Volta Grande para que fique como patrimônio da igreja.
Assinado: Marcolino Blemer”
Registro aqui, agora, a minha dúvida: seria esta imagem e este quadro um segundo procedimento religioso da comunidade ou seria esta imagem e este quadro os mesmos trazidos pela minha avó junto com a mudança, por ocasião da migração de Orleães para Taió?
Depois de tantos anos passados, será difícil encontrar uma resposta cabal a esta pergunta. Um testemunho escrito tem muita força e credibilidade, não há dúvida. Por outro lado, um testemunho oral que perpetuou-se por setenta anos, igualmente, deixa, pelo menos, inquieto o historiador e o pesquisador. Quem sabe, um dia, alguém se aventure por uma averiguação que possa resolver a questão.
Importa, porém, que a imagem e o quadro estão aí como um testemunho de fé dos nossos pais e avós. E, convenhamos, uma preciosa devoção. Nossos antepassados trouxeram esta devoção da própria Itália, onde viveu o santo mais popular da Igreja e um dos maiores santos que a humanidade já conheceu, São Francisco de Assis. Com sua fundação, a Ordem dos Frades Menores, os franciscanos, ele marcou e renovou a Igreja do seu tempo, mergulhada, então, em muitos desvios. Entre esses desvios, talvez o maior deles era o apego ao luxo e ao poder. O ‘poverello” viveu radicalmente e pregou o espírito de pobreza, consoante ao Evangelho que proclama “felizes os pobre em espírito”. Essa genuína espiritualidade evangélica fez surgir o eminente discípulo, Santo Antônio de Pádua.
Essa renovação, esse novo frescor da fé cristã/católica, nossos antepassados herdaram fervorosamente da pátria-mãe e, de lá, eles a trouxeram muito viva para a nova terra. Na casa dos meus avós, diversos quadros de São Francisco e de Santo Antônio via-se expostos nas paredes.
Ainda, a respeito do texto histórico de Marcolino Blemer, o fato de nele serem nomeadas mais duas famílias, de Fredolina Nilsen Blemer e Augusta Kestring, além da minha avó, Otília, reflete o espírito participativo e comunitário da devoção ao santo discípulo de São Francisco. Isso é muito bom porque envolve mais famílias com essa sagrada história. E, com essa fé, fica ainda mais enriquecida a comunidade que preserva suas inspirações originais, notadamente as que mostram a fé daqueles pioneiros e pioneiras. E mais: prolongando-a para as novas gerações. No seu respectivo contexto histórico, terão, eles também, necessidade, com certeza, da força e do consolo da fé, pois diz o Apóstolo Paulo: “O justo viverá pela fé” (Romanos 1,17).
Texto e fotos: Pe. Raul Kestring